Baseado: “A Máquina”, de Adriana Falcão
Direção: Gabriel Gonçalves
Duração: 90 minutos
Gênero: Cordel
Apresentação: 02 de julho de 2016
“Karina da rua debaixo” (Jac Giacon) sonha em ser atriz e partir para o mundo. Antes que seu amor lhe escape, “Antônio de Dona Nazaré” (Manuel Figueiredo) adianta-se numa cruzada kamikaze para trazer o mundo até Karina. Em uma visão subjetiva, o próprio Antônio narra seus feitos, divergindo-os entre Sanidade, Lembrança e Loucura (componentes de sua história que, frequentemente, se interferem).
Uma história em que os sonhos contradizem a realidade, as condições geográficas e políticas ameaçam conter a vida, e o amor, como sempre, desempenha o papel de elemento transformador.
Na última semana, em um intervalo de três dias, tive a alegria de assistir por duas vezes A Máquina, peça reconhecida como o Melhor Espetáculo do I Prêmio AATA de Teatro Amador. Mas esse texto não é apenas sobre a apresentação que rendeu este prêmio ao Teatro Flácus, mas também sobre a estreia, quando os nervos estavam à flor da pele e erros bobos aconteceram, sem que isso tirasse a magia por trás do melhor trabalho que o grupo realizou até hoje.
Baseado no romance homônimo de Adriana Falcão, A Máquina é um espetáculo diferente de tudo o que o Teatro Flácus está acostumado a apresentar e talvez foi o que conquistou, mesmo não sendo um enredo de fácil compreensão. Afinal, o teor filosófico e reflexivo da peça exige muito mais do que apenas a vontade de se sentar na poltrona para se divertir.
Apesar de ter consciência de que muitos sairiam do teatro sem compreender o espetáculo, o grupo soube balancear tudo para agradar gregos e troianos, em um misto de diversão e emoção. Se a diversão vem através das sacadas que levam ao humor, a emoção se dá por uma trilha sonora de fazer o peito apertar e os olhos ficarem marejados, quase levando às lágrimas, algo que até hoje particularmente me aconteceu em apenas duas ou três peças (mas abro parêntese para dizer que na estreia o som alto prejudicou e muito o andamento, algo corrigido para a segunda apresentação).
E se fui obrigado a segurar a emoção, isso se deve muito pelo enredo forte que serve como aliado para todo o elenco. A história se encaminha através da visão de Antônio (Ary Oswaldo), um senhor que vive na mais pura sanidade e começa a recontar, depois de muitos anos, a sua história de amor e como o seu parentesco com o tempo acabou influenciando toda a trajetória de sua vida. Ou não… Isso porque a sua sanidade se confunde com a lembrança e esta, por sua vez, se confunde com a loucura, criando a dúvida do que de fato acontece.
Para viver as lembranças de Antônio, o espetáculo conta com a magia e a química indiscutível de um dos casais mais belos que vi no teatro amador: Jac Giacon e Manuel Figueiredo, reconhecidos como Melhor Atriz e Melhor Ator do festival supracitado. O casal protagonista funciona tão bem que se torna impossível não se encantar com o amor entre as personagens Antônio e Karina, mas o grande diferencial foi como, além de se completarem, os dois passam verdade e emocionam, em especial na música tema — e como jurado afirmo que o encantamento foi um dos vários motivos que levaram ambos a conquistarem seus respectivos prêmios.
Por conhecer o trabalho dos dois há anos, não foi uma surpresa o que fizeram. Pelo contrário. Já esperava que ambos se destacariam e fariam com que a peça tivesse apenas a ganhar por tê-los como protagonista, no entanto jamais esperei tanta intensidade. A delicadeza e a beleza de Jac se encaixaram perfeitamente com o talento e a entrega de Manuel, e por isso juntos são a cereja do bolo (e abro mais um parêntese para dizer que na estreia os senti nervosos, mas na segunda apresentação foram irretocáveis).
Se isso aconteceu foi muito pela direção de Gabriel Gonçalves, que fez sua estreia como diretor em alto nível. Mas o que o fez se destacar foi a forma como se preocupou com cada detalhe, dirigindo todo o elenco com o mesmo cuidado, a ponto de personagens sem falas e outras, meros coadjuvantes, se destacarem tanto quanto o trio protagonista.
O que faltou da sua parte foi um cuidado com pequenos detalhes que, se melhor trabalhados, poderiam resultar em algo ainda melhor. É o caso da tão aguardada máquina do tempo, que ao entrar em cena, com uma forte luz sendo jogada contra o público, impossibilita qualquer um de continuar com os olhos voltados ao palco. Por falar em luz, de um modo geral a iluminação também não favorece a fotografia e o elegante cenário, que peca em um ou outro momento, porém nada tira o brilho de um casal encantador e das muitas cenas lindas, tocantes e memoráveis.
Embora na minha visão alguns detalhes podem ser melhorados no roteiro, cortando algumas cenas e estendendo algumas outras, e no figurino, para remeter instantaneamente ao cenário em que se passa a história, A Máquina é um espetáculo pronto para conquistar cada vez mais prêmios. Isso é o máximo que posso dizer. O resto só dá para sentir ao ter a emoção e o privilégio de embarcar em uma máquina do tempo que te leva a perguntas sobre o hoje e o amanhã, mas acima de tudo te faz se apaixonar por atores/atrizes, personagens e pela arte teatral como um todo.